sexta-feira, 27 de junho de 2008

cozinha do orixa

A Cozinha do Orixá
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A Comida e o comer ocupam um lugar fundamental na vida dos terreiros (...). Isso aparece explicado de várias formas, através de uma visão muito ampla, onde ela é entendida como força vital , energia, principio criativo e doador de algo. Na comida, encontra-se a energia máxima de um oferta, mas, acima de tudo, ela é a força que fortifica os ancestrais, então, é um meio, um veículo através do qual, grupos humanos e civilizações se sustentaram durante milênios fazendo contrato com o sagrado.
No Terreiro, a chamada comida de Orixá obedece a prescrições complexas constituídas ao longo do tempo e redefinidas a cada momento, de acordo com a função que de desempenhar ou à "realidade" que deseje instaurar ou dialogar. Tudo isso é expresso nas múltiplas formas, maneiras e diferentes modos de preparar, fazer ou de "tratar" os ingredientes.
Comida é sacrifício, ebó no seu sentido mais amplo, mola propulsora que conduz e leva o Axé. Daí sua intima relação com Exu, àquele que come tudo, encarregado de sua distribuição no mundo. O sacrifício é, assim, indispensável para viver, pois nada se sustenta sem esta troca de força, de energia, sem essa reposição, num universo onde tudo é dinâmico e nada acontece por acaso. Onde até a folha que se desprende da árvore um por que preciso.
Através da comida oferecida aos Orixá, se estabelece relações entre o devoto, a comunidade e o Orixá. É sobretudo nas Festas que se desenrolam ocultamente aos olhos dos de fora, que podem levar meses e festas que são feitas para os de fora, realizadas no barracão, tornadas publicas, onde em algumas delas, são exibidas a maior quantidade possível de comidas servidas aos Orixás (...), (...) distribuindo, assim, aos presentes a sua força máxima.
Por traz de cada prato ofertado há sempre uma visão de mundo, um por que, que faz com que o comer instaure um sistema de prestações e de contra prestações que englobam a totalidade da vida. (...).
A comida de Orixá difere, assim, das comidas servias no dia-a-dia do terreiro, bem como daquela que são passadas no corpo das pessoas, usadas para "descarregar", limpar, livrar de algum contra-axé.
Em linhas gerais, comida é tudo que se come. Desde a pimenta e o obí que se masca para conversar com o Orixá, ao naco de carne oferecido a este mesmo Orixá, partilhado pelas pessoas. Nesse processo de diferenciação, em que os ingredientes, na sua grande maioria, são os mesmos, muda-se a forma de ritualizar, a elaboração, o cuidado, "o tratamento", a maneira de lidar com o mesmo ingrediente, o sentido impresso e invocado através das palavras de encantamento, cantigas e rezas.
Assim, falar sobre esta comida, suas relações, circunscrevê-la dentro de um espaço, momento, consiste num dos nossos principais desafios. (...).
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Dentro do universo (...), a cozinha merece atenção especial, por ser dos espaços onde se passa e se constitui o sagrado. Tudo remete a esta dimensão. Assim, "A cozinha de santo" aparece sempre como algo distinto, separado da cozinha do dia-a-dia. Separada na sua grande maioria, não por limites externos, mas internos que são representados por mudanças de atitude, ações, formas de uso, etc..
Em muitos terreiros (...), o local onde são preparadas as comidas dos Orixás é o mesmo onde são feitas as comidas do dia-a-dia. Esta separação, todavia é realizada de forma bastante visível e determinada. Muitas vezes se reserva para as comidas de santo um fogão especial que pode ser de lenha ou industrial, enquanto a outra permanece num fogão menos. Comum e se trocar de horários. É muito difícil se mexer com as panelas dos Orixás ao lado de outras panelas, bem como misturar os utensílios destas duas cozinhas.
"Cozinha de santo" é, assim, mais que um lugar determinado que, em terreiros de estrutura maior, (...), se tem para preparar somente os pratos dos Orixás e, sim, um espaço criado e redefinido a cada momento, no terreiro, através da separação dos utensílios e mudanças de comportamento. Tudo participa do sagrado: o espaço em si, as panelas, travessas, pratos, bacias, cestos, peneiras, colheres de pau, ralos, o pilão, as frigideiras, formas de assar e, sobretudo as pessoas que nela entram.
A cozinha é cheia de interdições como: não conversar mais que o necessário, não falar alto, gritar, cantar ou dançar musicas que não sejam do santo, (...). Neste espaço sacralizado tudo vai ganhando significado: a bacia que cai, o garfo, a faca, a colher, o óleo que faz fumaçar o fogo, etc. na cozinha se aprende além do "ponto" certo de determinado prato, que não se dá as costas para o fogo, não se joga sal no chão, não se mexe comida de Orixá com colher que não seja de pau, que a comida mexida por duas pessoas desanda, que não se joga água no fogo e que muitas pessoas por terem o sangue ruim fazem a comida desandar. Ou que a presença de pessoas de um determinado Orixá faz com que certa comida não dê certo, como por exemplo: em cozinha onde se tem gente de Xangô o milho de pipoca queima antes de estourar. (...).
Embora marcada por vários limites, a cozinha é mesmo escola mestra, local onde se aprende as lições mais antigas, através do exercício longo e paciente da observação. Local onde permanecem por maior período de tempo os iniciados, seja varrendo, lavando, limpando, guardando, acendendo ou mantendo o fogo, cozinhando, com olhos e ouvidos atento a tudo que se passa nela. (...). (...) por ser ela mais que um local de transformação e sim de passagem e transmissão de conhecimento, por onde se transita algo essencial que ultrapassa os limites das oposições por situar-se no mais intimo e profundo ser do homem: o comer.


A Cozinha, Os Orixás E Os Truques: Entre A Invenção E A Recriação Onde O Tempo Não Para...

Este texto foi extraído do trabalho apresentado no seminário temático ST03"Os afro-brasileiros"
VII Jornadas sobre Alternativas Religiosas na América Latina
São Paulo, 22 a 25 de setembro de 1998, pelo Dr. Vilson Caetano de Souza Júnior. PUC-SP

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